O travesseiro estava empapado do suor do sonho. Não do sonho. Do pesadelo. Não havia dormido muito bem; aliás, não dormiu nada. Parecia
que o pesadelo estivera com ela à noite toda, cansando-a. Arrepiava-se quando
pensava naquele homem estranho com cara de pedra, com uma cara sem rosto, com uma
expressão de metal frio. Ele estivera deitado em cima dela, penetrando-a
enquanto sua saliva caia em seus olhos que teimavam em permanecer abertos.
Acordou com a garganta seca e com o corpo lavado de suor. Olhou para o outro
lado da cama. Nestor já havia se levantado e estava na ducha. Apesar de esse
fato ser estranho – Nestor há tempos havia deixado de tomar banho de manhã, como
há tempos também havia se esquecido de se preocupar com sua aparência e,
consequentemente, com a vida a dois -, estava tão exausta que deixou pra lá
qualquer raciocínio. Deixar pra lá tem sido uma constante, ultimamente. Esse conformismo,
esse deserto de planície em que o casamento se aloja com o passar dos anos
faz com que o “deixe pra lá” vire regra. Diferentemente do sonho, em que seus
olhos não se fechavam enquanto a mão do cara de pedra apertava seu pescoço depois
de ele ter gozado dentro dela, nesta manhã pegajosa eles não se abriam direito.
Acordou quando morreu, sedenta e rodeada de umidade. Levantou-se devagar,
pesada, como se o gozo ainda estivesse em cima dela, e foi para a cozinha.
Precisava beber água e preparar algo para o café da manhã, algo preto, bem
preto. No caminho da cozinha, ao passar pelo banheiro, notou que a ducha ainda
estava aberta. Nestor havia sido um homem fascinante desde o início. Ele
conseguira fazê-la, inclusive, acreditar em Deus. Nunca havia entendido Deus.
Inclusive nunca O temeu, condição básica, segundo ela, para que as pessoas acreditassem
na existência Dele. Mas Nestor havia mostrado a ela que Deus existia e que poderia
ser amor, caso a pessoa fosse feita de amor. E ela era o próprio amor. Nestor
era amor. Depois as coisas foram mudando e os suores só existindo nos pesadelos.
Com isso, Deus voltou a ser ininteligível. Bebeu água, pegou o pó de café bem
preto e reparou que a porta de entrada do apartamento estava aberta. Como tudo estava estranho
naquela manhã – para ser mais exato, o estranho já havia entrado na noite
anterior, quando Nestor chegou tarde e bêbado e, aí é que está o estranho, com
um bolo de laranja que supostamente deveria ser a comprovação da consideração que ele
ainda tinha por ela – fechou a porta preocupada e voltou para o café preto.
Diria a ele, depois que tudo estivesse escorrido pelo ralo, na ducha, que tomasse mais cuidado, pelo menos que tomasse cuidado com a porta. É um perigo, uma porta aberta. Uma porta aberta pode
parecer um convite para sair, pode parecer um fim. Ela sempre pensa em como
será o fim deles, dela e do Nestor. Se esse fim está longe, se está próximo ou
se já chegou. Nestor estava demorando na ducha, demorando demais, e o café
estava esfriando e deixando tudo preto. Estranho. Nestor nunca esqueceu a porta
aberta, nunca mais tomou banho de manhã, ainda mais um banho demorado. Resolveu
ir chamá-lo. De repente até contaria a ele sobre seu pesadelo e sobre como
acordara suada de gozo, quase sufocando no travesseiro empapado e com a
garganta doendo como se o sonho pesado realmente tivesse tentado estrangulá-la. Que pavor
sentira do cara de pedra sem rosto, e que pressão seu corpo duro fizera nela!
Estava cansada por causa da noite mal-dormida e por causa do que estava
escorrendo de entre suas pernas. Chegou até a porta do banheiro e chamou:
Nestor! Nestor! Nada. Olhou para o quarto e foi então que reparou na mão. Ela
saia de baixo da cama e tinha os dedos um pouco fechados, como se tivesse
tentado se agarrar à vida. A aliança de casamento que Nestor tanto se orgulhara
em escolher no dia do noivado jazia no dedo inerte. Ela não teve tempo de fazer
nada, nem mesmo de ouvir o registro da ducha sendo fechado. Sem quase se dar
por nada, sentiu na nuca o hálito de metal frio da cara sem rosto e teve, estranhamente,
seu inimaginável fim.